sábado, 1 de fevereiro de 2014

UMA ANÁLISE DA OPERAÇÃO TARTARUGA NO DISTRITO FEDERAL


Por Aderivaldo Cardoso* - A Constituição Federal do Brasil prevê que segurança pública é um direito e um dever de todos, também prevê a existência de duas polícias nos Estados, sendo uma preventiva e uma investigativa. O Brasil é uma das poucas polícias do mundo que possui tal modelo. A “operação tartaruga” ou “operação legalidade” de Policiais Militares de Brasília, que se alastra para outros Estados da Federação, não pode ser vista apenas como mais um “movimento reivindicatório”, pois seria simplista demais. A “operação tartaruga” não é causa, é efeito!

Durante cinco anos, como estudioso de segurança pública, venho estudando a mudança cultural dentro das corporações policiais no Brasil, em especial no Distrito Federal. O que a mídia e policiais militares chamam hoje de “operação tartaruga”, há um bom tempo, tenho chamado de “desmilitarização cultural”. Mas o que seria isso?

A Polícia Militar do Distrito Federal, apesar de constar em sua farda que foi fundada em 1809, ainda é muito jovem. Sua primeira turma foi formada em Brasília em 1967, três anos após o golpe militar de 1964. A “ideologia” predominante na corporação, seu “habitus” e “modus operandis” ainda se articulam dentro da lógica daquela época, não conscientemente, mais inconscientemente, por meio do “imaginário coletivo” repassado por sua primeira geração.

Outro fato curioso é que a corporação policial vive hoje, ainda, sob a “lógica estruturante” daquele tempo, pois sua estrutura e legislação foi toda elaborada no período de chumbo, sob a “lógica” da “repressão” no ápice da ditadura militar. Grande parte de sua legislação foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 ou recebeu uma “roupagem” nova para dar um ar de legalidade na reabertura política do país, algo necessário no Estado Democrático de Direito.

Nos últimos dez anos a Corporação policial do DF tem tornado-se cada vez mais próxima da sociedade e das estruturas policiais, se afastando cada vez mais da lógica militar. Na lógica militarista o infrator da lei é visto como um inimigo a ser combatido, ou seja, eliminado da sociedade. Na lógica policial foca-se na “eliminação” da conduta “indesejada” no seio da sociedade, o individuo mesmo criminoso, precisa ter seus direitos e garantias individuais preservados. Para isso, precisa-se de um profissional mais qualificado, mais preparado, ou seja, um mediador de conflitos na sociedade.

Ora, mas o que tudo isso tem a ver com “operação tartaruga”, “operação legalidade” ou “desmilitarização cultural”? Como disse anteriormente, tal fenômeno não é causa, é efeito. É o resultado. É a falência do modelo de polícia atual. Constitucionalmente a Polícia Militar é responsável pelo “policiamento preventivo” e pela “manutenção da ordem”. O que significa isso? Quem ordem deve ser preservada? Se a lógica da corporação, por meio de sua ideologia e legislação ainda está dentro da visão de tempos de ditadura, tal lógica não poderia está sendo deturpada? Não estaríamos vendo em nosso país a perpetuação do pensamento da época por meio do controle policial?

A “operação tartaruga” expõe a fragilidade de um sistema de segurança falido e de uma definição ultrapassada de polícia. Os novos policiais conhecem o sistema e suas falhas. A exigência do nível superior para ingresso na Corporação e o aumento do quantitativo de policiais “filhos da democracia” tem potencializado a aceleração do processo de transformação do pensamento no meio policial. Dentro da lógica constitucional a “polícia preventiva” é aquela que age “antes” do crime. O problema é que a norma é limitada. A “polícia investigativa” é responsável por agir “depois” do crime. O grande problema da “operação tartaruga” é que atualmente não existe uma “conexão” entre a “polícia preventiva” e a “polícia investigativa”, a ligação tem um nome: ciclo completo de policiamento. O “vácuo” deixado era ocupado pela Polícia Militar. Outro grande problema dentro do sistema de segurança pública é quem deve agir durante o crime, no sentido de prender o infrator da lei? Segundo a Constituição Federal, ninguém será preso senão em “flagrante delito” ou “por meio de ordem judicial”. Além disso, no momento do crime qualquer um do povo pode, a polícia deve prender o infrator, mais uma vez o problema legal está exposto: que polícia? Qualquer uma deve, mas durante muito tempo, por ser mais próximo das comunidades, a polícia militar era vista como a única responsável pela prisão dos criminosos.

Para finalizar o raciocínio, durante anos policiais militares “extrapolam” suas funções constitucionais, muitas vezes tornando-se “bandidos fardados” no afã de serem “heróis”. Tentando mostrar produtividade forjavam provas, cometiam atos de violência, torturavam, arriscavam-se em alta velocidade, juravam dar a “própria vida” em defesa da sociedade, como “escudos humanos”, dentre outras atrocidades aceitas dentro da lógica do regime ditatorial. Além de assumir toda a responsabilidade pela segurança pública. Atuavam preservando locais de crime, atribuição da policia investigativa (o crime já ocorreu), realizando serviços de fiscalização de trânsito, fiscalização ambiental, serviço de guarda diversos, apoio a outros órgãos, policiamento legislativo e judiciário, dentre várias outras funções. E por que a “operação tartaruga” é efeito e não causa? Ao trabalhar dentro da “limitação da lei” os policiais militares do DF expõe todas as falhas do sistema. Após os últimos acontecimentos, mesmo que volte a atuar “normalmente” a Polícia Militar do Distrito Federal nunca mais voltará a ser a mesma. Outras policiais militares do Brasil estão seguindo o mesmo caminho da “desmilitarização cultural”. É hora de uma reforma policial profunda no Brasil.

Aderivaldo Cardoso é Especialista em Segurança Pública. Pós- graduado em Segurança Pública pela Universidade de Brasília pelo Departamento de Sociologia. Autor do livro: Policiamento Inteligente – Uma análise dos Postos Comunitários do DF.

0 comentários:

Postar um comentário