A Revista
Fórum publicou uma matéria com o tema: Desmilitarização,
um debate inadiável.
Muitos
especialistas e mesmo membros da corporação em diversos estados atribuem a um
tipo de cultura autoritária, consolidada em períodos não democráticos da
história brasileira, o modus operandi que parece natural a muitos agentes e que
envolve o uso da violência e o entendimento de que “o outro”, seja ele um
manifestante ou um morador da favela, é um “inimigo”.
Colaboradores
desta matéria:
·
O professor de Direito Penal da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Túlio Vianna.
·
Dalmo Dallari, professor aposentado de Direito da Universidade de São Paulo
(USP).
·
Maurício Santoro, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional no
Brasil.
·
Patrícia de Oliveira, fundadora da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a
Violência.
·
Eliana Sousa Silva, que faz parte da ONG Redes da Maré.
·
Debóra Maria da Silva, fundadora e uma das coordenadoras do movimento
Mães de Maio.
· Heronides
Mangabeira, Cabo da Polícia Militar do Rio Grande do Norte.
Cultura
militar e desinformação da sociedade
Os efeitos de uma polícia militarizada para a sociedade são inúmeros. A inadequação de uma corporação formada para combater inimigos reflete no tratamento dado aos cidadãos em geral. “Essa cultura do treinamento militar fica clara no filme Tropa de Elite, em que você tem um treinamento extremamente violento e agressivo com os recrutas. Essa agressividade vai ser transposta, em última análise, para o suspeito”, avalia Túlio Vianna. "Existe uma hierarquia: o tenente abusa do poder dele em relação ao sargento; o sargento, com o cabo, e o cabo com o soldado. Na hora que o soldado pega um suspeito civil, que na cabeça dele é um bandido, vai transferir todo aquele abuso que recebeu do superior hierárquico. Na hierarquia militar, não é o soldado que é a base da hierarquia, é o civil e, principalmente, o que é suspeito da prática de crimes."
Para
Vianna, parte da sociedade ainda não atentou para a importância de se discutir
o tema da desmilitarização por falta de informação. “Quem fala que a
desmilitarização é tirar a farda ou desarmar a polícia não faz ideia do que
seja isso. Só para dar um exemplo, as polícias dos EUA e da Inglaterra são 100%
civis. Ninguém em sã consciência pode dizer que a polícia norte-americana é
desarmada ou pouco treinada, ou, ainda, não uniformizada”, pontua. “É uma
questão de unificação das atividades policiais em uma única corporação,
formando o que chamamos de ciclo completo, quando ela faz tanto o policiamento
ostensivo quanto o investigativo. E visa também a acabar com o Código Penal
Militar aplicado aos policiais. A desmilitarização tem muito mais relação com a
cultura institucional do que propriamente com o tipo de armamento e a
uniformização. Isso não vai mudar, assim como nos EUA e na Inglaterra existem
policiais que usam farda e armamento durante as suas atividades. Isso é bem
claro em qualquer país no mundo onde a polícia seja 100% civil. O que, aliás, é
a regra.”
Já
Maurício Santoro utiliza o exemplo da Turquia para mostrar a dificuldade que
países com um passado recente de autoritarismo têm para lidar com
manifestações. “No mês passado, estive na Turquia e acompanhei alguns
protestos. Lá, houve uma repressão muito forte, em torno de 7 mil pessoas
ficaram feridas e, por parte da autoridades, houve um processo de
criminalização, já que as manifestações não foram vistas como parte legítima do
jogo político. Houve violência, prisões arbitrárias, e o primeiro-ministro
estuda propor uma lei específica para as redes sociais. Com a história de
autoritarismo e violação de direitos humanos nas ditaduras que eles tiveram – a
última acabou quase simultaneamente à nossa –, parte dos políticos atuais tem
uma trajetória de violação de direitos humanos, tanto nas ditaduras como na
repressão às minorias turcas. Existe um legado autoritário”, informa. Os
instrumentos repressivos utilizados pelos turcos também se assemelham bastante
aos usados por aqui. “É uma polícia militar que em diversas ocasiões utiliza os
mesmos equipamentos da nossa, existem caveirões, por exemplo, e o gás
lacrimogêneo usado na repressão é fabricado no Brasil.”
Se
a classe média, por conta das manifestações em regiões centrais, tem tido
contato maior com a atuação abusiva de agentes do Estado, em locais periféricos
tais ações são rotineiras. Um dos episódios mais recentes e chocantes aconteceu
no Rio de Janeiro, em 24 de junho, por conta de uma incursão da polícia no
Complexo da Maré, após um policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope)
ter sido baleado e morto em um tiroteio. Em uma ação com características de
vingança, nove pessoas foram mortas, o que causou revolta na comunidade.
“A
formação desses policiais é de enfrentamento, a ação deles é como se um
batalhão estivesse indo para o front de uma guerra. O morador de favela é um
inimigo, mesmo nas comunidades tidas como ‘pacificadas’, as UPPs não mudaram
essa relação”, sustenta Patrícia de Oliveira, fundadora da Rede de Comunidades
e Movimentos Contra a Violência e irmã de Wagner dos Santos, único sobrevivente
e testemunha da Chacina da Candelária, que completou 20 anos em 2013. Para ela,
desmilitarizar a polícia seria um passo importante para alterar esse cenário no
qual moradores de comunidades mais pobres se tornam alvos rotineiros de abusos
e violações de direitos. “Desde 1990, pedimos a desmilitarização no Rio de
Janeiro, porque somos vítimas constantes da atuação de uma polícia que ainda
atua como na ditadura militar. Este ano, com as grandes manifestações que
aconteceram, essa reivindicação começou a ganhar mais força, com a atuação das
PMs contra os manifestantes”, conta. “Antes, era só favelado que tinha de
enfrentar a polícia dessa forma. Mas favelado podia apanhar, agora; com parte
da elite apanhando na rua, fica mais fácil discutir a forma como atuam os
policiais.”
Eliana
Sousa Silva, que faz parte da ONG Redes da Maré, presenciou a morte de uma
criança de 3 anos por uma bala perdida, decorrência de uma operação policial no
local em outubro de 2006. O episódio foi o ponto de partida para que ela
estudasse como a comunidade local via a polícia e vice-versa, o que resultou no
livro Testemunhos da Maré (ver entrevista na pág. 12). Eliana, que também fez
parte do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp) representando o Rio de
Janeiro e as favelas, vê algumas mudanças na relação da polícia com princípios
militares como, por exemplo, o fato de, até pouco tempo, não haver comando da
PM que não fosse quadro do Exército. Porém, faz a ressalva de que, do ponto de
vista da estrutura, isso não significou mudanças efetivas nas práticas da
corporação.
“Não
se modificou o estatuto que rege o seu funcionamento. O que acontece é que vai
havendo mais pessoas que comandam dentro de uma lógica que, apesar de ser da
PM, é mais aberta. Acho que esse debate [da desmilitarização] é importante
porque tem a ver com a formação. Quando se tem uma formação em que o foco é a
militarização para enfrentar a violência e todo esse contexto de crimes, é
óbvio que vai deixar de se considerar outros elementos que poderiam ser parte
desse enfrentamento, não apenas o enfrentamento bélico. Você deixa de trazer
outras questões e, com isso, acaba caracterizando a polícia apenas de um
jeito”, acredita. “Na missão da PM está prevista a prevenção do crime, só que a
gente não vê a polícia agindo na prevenção, mas enfrentando situações muitas
vezes de forma violenta, como a gente teve na Maré, situações que mereceriam abordagem
e conduta completamente diferentes do profissional de segurança. Essa resposta
também tem a ver com a lógica militar que rege essa polícia.”
Uma
bandeira ampla
“Para nós, a desmilitarização é uma reivindicação que tinha que ter vindo junto com o fim dos registros de ‘resistência seguida de morte’, já está atrasada. Nossa polícia não nos oferece segurança, mas sim insegurança, eles matam nossos filhos descaradamente. Essa instituição carrega os legados e ideologias da época da escravidão, são os mesmos coronéis que caçavam escravos”, acusa Debóra Maria da Silva, fundadora e uma das coordenadoras do movimento Mães de Maio, surgido em consequência do massacre ocorrido em São Paulo entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, que vitimou 493 pessoas e cuja maior responsabilidade recai sobre grupos de extermínio que contariam com a participação de agentes do Estado. “A PM viola os direitos humanos dos praças, que são explorados dentro da corporação, então imagina o que eles não fazem nas ruas. Fazem mal aos pobres, negros e jovens das periferias, é uma polícia treinada para matar, e o inimigo, declarado nas aulas práticas deles, nos bancos onde os policiais são treinados, são os negros e periféricos. Eles matam com a certeza da impunidade”, desabafa.
Quando
Débora se refere aos praças, toca em um ponto que nem sempre é abordado quando
se discute a desmilitarização. Boa parte dos integrantes das PMs no Brasil se
posiciona a favor de mudanças no modelo das polícias, como mostra a pesquisa “O
que pensam os profissionais da segurança pública, no Brasil”, realizada pelo
Ministério da Justiça e coordenada por Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim e
Silvia Ramos. Envolvendo a aplicação de 65 mil questionários, o levantamento
mostra opiniões distintas de acordo com a posição que o profissional ocupa na
corporação. Dos policiais militares que não são oficiais, como soldados, cabos,
sargentos e subtenentes, 42,1% preferem que a polícia seja unificada, e que
seja civil, enquanto 18,8% dos não oficiais também são favoráveis à unificação,
mas com a nova polícia unificada sendo militar. Entre os oficiais, são apenas
15,8% os que se identificam com a proposta de unificação das polícias, com a nova
corporação se tornando civil.
“No
meio policial, nós temos os praças, que são favoráveis à desmilitarização, e os
oficiais, que normalmente são contrários. Só que, pelo militarismo, os praças
acabam ficando interditados na sua manifestação de expressão”, observa Túlio
Vianna. “O militarismo impõe uma série de restrições, e eles não têm como
expressar em público, de uma forma mais ativa e contundente, o desejo deles.
Então, quem quer a desmilitarização, que são os praças, não pode se manifestar
e o grande público não sabe exatamente o que é isso e por que isso é
importante.
O depoimento de Heronides Mangabeira, cabo da
Polícia Militar do Rio Grande do Norte , evidencia os pontos abordados por
Vianna. “A pessoa entra na polícia e deixa de lado vários direitos e garantias
que tinha porque ela passa a ser, a partir de então, militar”, diz Mangabeira,
que também é acadêmico de Direito e pesquisador da área de Segurança Pública.
“Por conta disso, somos cerceados de vários
direitos como liberdade de pensamento, de expressão e até mesmo de locomoção.
Por exemplo, se eu for me dirigir até São Paulo, tenho de pedir ao meu
comandante uma Guia de Trânsito, para quando chegar em São Paulo procurar uma
unidade da Polícia Militar, assinar e comprovar que realmente estive lá”,
argumenta.
Mangabeira também afirma que o policial não conta, na
sua condição de militar, com outros direitos trabalhistas que afetam seu desempenho profissional e a própria atuação dos agentes. “O militar também
sofre por não ter jornada de trabalho digna, por não ter perspectiva de
crescimento, por não ter horas extras… “Isso reflete na rua, na sociedade, na prestação do serviço de segurança pública, já que o policial sofre de
depressão, estresse…”
Ele também acha inadequada a formação dada aos PMs
hoje, algo que dificulta a interação dos agentes com a sociedade. “A formação
militar é bastante rígida e o policial vai para a rua com aquela cultura,
tratando a sociedade às vezes de forma igualmente dura”, aponta.
Túlio
Vianna também acredita que o modelo policial hoje prejudica muito os não
oficiais, que acabam ficando à mercê de um estrutura pouco flexível e
autoritária. “O modelo de militarização trabalha para tornar o policial, ou o
militar, um objeto na mão do seu comandante. De forma tal que, se você tiver
uma guerra, vai precisar daquele indivíduo trabalhando 24 horas por dia para o
Exército. Para repelir a ameaça do inimigo, tem de ter uma obediência muito
grande, são situações extremas onde a morte é muito eminente. Então, o
militarismo foca em uma dessubjetivação do militar. É a obediência máxima”,
argumenta. “A polícia não pode ser assim, é um trabalho como outro qualquer. O
sujeito volta para a casa depois do expediente, tem sua vida normal dentro do
país dele. Nós não podemos transportar o ponto de vista militar e sua
hierarquia para dentro da polícia.”
Outra
questão que deve ser tocada em relação à desmilitarização é o papel
desempenhado pela Justiça Militar, à qual cabe processar e julgar policiais
militares em crimes militares tipificados em lei. Embora em crimes não
militares, como os dolosos contra a vida, por exemplo, o agente possa ser
julgado na Justiça comum, o papel desempenhado por esse ramo militar tem, de
acordo com Vianna, ignorado fatos relevantes e focado mais em questões
relativas à manutenção da hierarquia, penalizando quem está na base.
“Claro
que se você perguntar a um PM se ele acha que a Justiça Militar é rigorosa, vai
falar que sim e argumentar que os números de condenação são muito grandes.
Porém o número de oficiais condenados é muito pequeno. Mas é rigorosa com os
praças, e não necessariamente por crimes de corrupção por exemplo, às vezes por
questões bobas como o sujeito não estar uniformizado ou ter xingado o oficial”,
aponta Vianna, que também atenta para uma espécie de mistificação em torno de
hierarquias e regramentos inflexíveis, como se a rigidez fosse um fator
impeditivo de desvios de conduta ou corrupção. “Hierarquia não acaba e nem
diminui corrupção. Na verdade, muitas vezes ela concentra a corrupção em
oficiais. Esse argumento é muito ingênuo, se a hierarquia militar resolvesse o
problema da corrupção, nossa polícia seria a polícia da Suíça.”
Fonte:
Revista Fórum
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